26 de janeiro de 2012

SERES INVISIVEIS, SEM NOME

 

O HOMEM TORNA-SE TUDO OU NADA, CONFORME A EDUCAÇÃO QUE RECEBE

Fernando Braga da Costa -a direita de camisa laranja A invisibilidadee a humilhação repercutem até namaneira como você anda - fala - olha

O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou oito anos como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali, constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são 'seres invisíveis, sem nome'. Em sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a existência da invisibilidade pública, ou seja, uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde enxerga-se somente a função e não a pessoa. Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o salário de R$ 400 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior lição de sua vida:
'Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência', explica o pesquisador.
O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não como um ser humano. 'Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão', diz.
No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram uma garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha caneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito vindo de outra classe, varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo, alguns se aproximavam para ensinar o serviço. Um deles foi até o latão de lixo pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas pela metade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a gente estava num grupo grande, esperei que eles se servissem primeiro. Eu nunca apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a caneca improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à cena, como se perguntasse:
'E aí, o jovem rico vai se sujeitar a beber nessa caneca?' E eu bebi. Imediatamente a ansiedade parece que evaporou. Eles passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar.

O que você sentiu na pele, trabalhando como gari? Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão central. Aí eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei pelo andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico, passei em frente à lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensação muito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma angustia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar, não senti o gosto da comida e voltei para o trabalho atordoado.
E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou? Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando também a situações pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor se aproximando - professor meu - até parava de varrer, porque ele ia passar por mim, podia trocar uma ideia, mas o pessoal passava como se tivesse passando por um poste, uma árvore, um orelhão.
E quando você volta para casa, para seu mundo real? Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que você está inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais. Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa. Esses homens hoje são meus amigos. Conheço a família deles, frequento a casa deles nas periferias. Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber que eu sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um animal doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se fossem uma 'COISA'.
*Ser IGNORADO é uma das piores sensações que existem na vida!

 

'Homens invisíveis'

No livro, Fernando Braga da Costa relata a experiência de ser gari e entrar em contato com o mundo através do lixo dos outros.
Por nove anos, o autor vive na pele as consequências do trabalho de um varredor de rua, objeto de seu mestrado e doutorado
O título 'Homens Invisíveis' faz uma alusão ao descaso que a população faz destes trabalhadores, dificilmente notados no dia-a-dia
(...) A tarefa dos 70 alunos da disciplina Psicologia Social II era exercer, por um dia, e ao lado dos trabalhadores reais, uma profissão definida como "subalterna e não-qualificada". Cada um escolheria a que bem entendesse. Fernando, assim como os demais estudantes, cumpriu a tarefa. Mas não limitou a experiência àquele único dia. Por vontade própria, passou a exercer a profissão escolhida – e a viver na pele as consequências dela – uma vez por semana. (...)
Somente os relatos dos profissionais "subalternos e não-qualificados", anotados no diário de campo do mestrado ao longo de oito anos, renderam mais de 500 páginas. Antes mesmo da conclusão, a pesquisa ficou famosa, no meio acadêmico e fora dele. Fernando, que não tinha nem sequer a pretensão de escrever um artigo, passou a receber telefonemas de várias partes do país. (...)
A possibilidade de intervir, ainda que de forma miúda, para melhorar a realidade, motivou Fernando a escrever Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. A obra conta a história do relacionamento dele com pessoas que exercem não apenas uma profissão "subalterna e não-qualificada", mas uma profissão desumana e mal-paga, que condena seres humanos a trabalhos degradantes, a tarefas que ferem não só o corpo, mas também – e principalmente – a alma.
"O corpo é surrado, sugado, machucado, infestado: a única empresa do trabalhador vai falindo. Sua saúde entra em colapso, com complicações de todas as naturezas e magnitudes. (...) Um dia, a saúde falece, definitiva e precocemente. E a alma – humilhada, comprimida, aviltada, destroçada – permanece". Este e outros trechos igualmente contundentes nos mostram como é cruel o dia-a-dia e o destino de quem entra em contato com o mundo através do contato direto com o lixo e o material desprezado pelo mundo, por todos nós. Como é ingrato ser gari. Varredor de rua. Lixeiro. Subalterno. Não-qualificado.
Ocupante do cargo mais raso, denominado "ajudante de serviços gerais", gari não é consultado sobre qual trabalho deve ser feito antes. Não escolhe suas ferramentas e delas não pode reclamar, mesmo que sejam inadequadas, perigosas, desgastadas – enfim, mesmo que nem ao menos pareçam projetadas para o corpo humano. O trabalho – sujo, insalubre, braçal, repetitivo, humilhante – é exercido sob hierarquia severa e autoritária. Pior: por tudo isso, quem é gari deixa de ser visto como pessoa e passa a ser visto – quando visto – apenas como função. Geralmente, como provam diversos episódios do livro, gari passa despercebido. Não é notado ou cumprimentado. Vira homem invisível.
A leitura do livro provoca questionamentos que se repetem a cada página. Quantas vezes não notei um varredor na rua? Quantas vezes não lhe dei um simples bom dia? Quantas vezes passei por ele como se estivesse passando ao lado de um item paisagístico? "Um poste, uma árvore, uma placa de sinalização de trânsito, um orelhão, uma pessoa em uniforme de gari na atmosfera social: todos parecem valer a mesma coisa", constata Fernando em seu livro.
Arrogância e humildade
Diferentes capítulos mostram a forma arrogante como alunos, professores e funcionários da USP costumam (quando os notam) tratar os garis que trabalham para a prefeitura da universidade – foram esses, os garis da USP, os trabalhadores escolhidos por Fernando ainda durante sua graduação. "Tem gente que passa aqui, é como se a gente não existisse", conta um de seus companheiros.
Vestindo o uniforme de gari, Fernando quase nunca foi reconhecido ao cruzar com professores ou colegas estudantes do Instituto de Psicologia. Depois de um tempo, acostumou-se. Mas, no começo, a sensação era desconcertante, como revela no livro: "As pessoas pelas quais passávamos não reagiam à nossa presença. (...) Nenhuma saudação corriqueira, um olhar, sequer um aceno de cabeça. Foi surpreendente. Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível".
(...)
Indignação e poesia
Embora intercaladas por alguns trechos mais técnicos, que dão sustentação teórica ao trabalho, as histórias são contadas com um misto de emoção e indignação pulsante, e em alguns momentos o texto preciso de Fernando Braga da Costa chega a ser poético.
"Escrevi muita poesia quando era adolescente e, no início da faculdade, escrevia uma ou duas por dia. Mas sentia que, frente ao conhecimento acadêmico, minhas paixões pareciam coisas idiotas", lembra. Nessa época, diz, o apoio de sua terapeuta foi fundamental: "Quem sabe você não consegue juntar o rigor científico com a poesia?", era a aposta dela. Foi algo bem próximo disso o que Fernando fez em seu livro, lançado pela Editora Globo no final de 2004.
Apesar de alguns jornalistas terem escrito que a obra tem como propósito clamar por "melhores condições de trabalho" aos garis, Fernando fez questão de repetir, na entrevista, o que defende várias vezes em Homens invisíveis: o fim de profissões como gari e tantas outras.
Seu orientador, José Moura Gonçalves Filho, o Zeca, pensa da mesma forma. "Se nossos sentidos e corpos fossem feridos como o são entre os garis, compreenderíamos mais facilmente a necessidade de socialmente cancelarmos trabalhos degradantes, para a alma e para o corpo humano”. Zeca, que assina o prefácio de Homens invisíveis, afirma no livro que trabalhos como esse "não devem ser reservados a uma classe de homens rebaixados e degradados, mas precisariam ser socialmente generalizados, um dever de todos e cada um".
O convívio de uma década com os varredores transformou a vida de Fernando. "Parece que este mundo não me serve mais. Se vou a um restaurante, a sensação é desagradável quando sou atendido pelo garçom. Ele parece ser o antigo escravo a serviço da casa grande, ele me serve, mas não pode compartilhar a refeição comigo."
O que o psicólogo não esperava era que sua obra pudesse também causar transformações no comportamento de seus leitores. Meses atrás, ouviu de um jornalista gaúcho que o havia entrevistado dias antes, o seguinte relato: "A gente estava entrando na sala de aula da pós-graduação e, ao passar pela faxineira, nenhum dos meus colegas deu bom dia a ela. Mas, quando eu a cumprimentei, ela ficou visivelmente muito feliz, conversou comigo..."
Fernando diz que, emocionado, respondeu ao jornalista com um nó na garganta. "Não sei se era isso o que eu queria com meu livro. Dez anos atrás, eu não queria nada, não tinha nenhuma pretensão. Mas se o livro serviu ao menos para isso, para mudanças de atitude como essa, eu já fico muito feliz".

“Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social”
Fernando Braga da Costa
Editora Globo -2004 -254 páginas

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